segunda-feira, 24 de março de 2008

5

Teriam três filhos. Um menino, mais velho, e duas meninas, não muito mais novas.
Três crianças lindas, de pureza admirável. Cheias de vida, cheias de curiosidade, cheias de bochechas.
E que pais seriam! Longe de perfeitos, mas sempre dispostos a serem um pouco melhores. Namorados. Pais de três crianças lindas.
Miguel podia imaginar tudo isso.
Mas saiu da casa de Olivia, naquele dia. Não era capaz de receber todo o amor dela sabendo que só podia dar em troca o amor que tinha. E isso não dava conta do que Olivia merecia como mulher. Ele não tinha o suficiente para dar a ela. Foi por isso que se foi.

4

Miguel nunca se sentiu capaz de passar a vida ao lado de uma só mulher. Mas parecia que, ao lado de Olivia, começara a desenvolver tal habilidade.
Sem querer.
Olivia ensinava a viver a dois com uma doçura assustadora. Não cobrava de Miguel que fosse a mulher escolhida para viver com ele toda a vida.
Era isso o que despertava nele vontade de viver com ela.

domingo, 23 de março de 2008

3

Miguel e Olivia estiveram juntos por não-muito tempo. Mas, quando estavam juntos, uma hora era vivida com a intensidade de duas. Encontro muito forte.
- Miguel, quero ter um filho contigo.
Olivia, que nunca antes quis gerar uma criança, disse isso. E Miguel, que nunca negou desejar filhos, ficou em silêncio.
Foi para casa. O relacionamento parado, esperando o próximo encontro dos dois que, até então, não tinha acontecido.

sábado, 22 de março de 2008

2

Olivia não sabia muito o motivo de não estar junto de Miguel. Não era como gostaria de estar, mas era assim que estavam: não estavam.
Talvez fosse melhor assim. O amor que Olivia tinha dentro de si por Miguel era tanto que talvez devesse ser deixado. Essa era uma experiência muito nova - vivia o que era desconhecido até então, o ainda não experimentado. A curiosidade acabou levando-a para além de onde pensava ser capaz de ir.
Apesar das tantas lágrimas que lhe escorriam, não desgostava do que sentia. Não era um amor só profundo. Olivia amava também a superfície. Essa era a novidade que ampliava o sentir. Gostava de Miguel porque ele se vestia de tal jeito, porque estava sempre com o mesmo cheiro, porque ele dizia que não se importava se fosse acordado mesmo em sono profundo, porque ele gostava de camas altas, porque estava sempre de samba-canção.
Olivia passava noites sem saber se deveria chorar até se esgotarem as lágrimas ou se deveria parar e guardar o choro para mais tarde. Não tinha se decidido se já - ou ainda - era hora de se dar por satisfeita. E nem sabia se queria chegar logo à essa conclusão.

segunda-feira, 17 de março de 2008

1

Era uma segunda-feira. Dia de começar de novo, porque recomeçar não costuma dar muito certo.
Foi nessa segunda, pela manhã, que decidi apresentar-lhes Olivia. Não sei se a consciência do risco era plena, mas ela não me impediu de trazer Olivia ao mundo. Esse mundo que é longe de ser só meu.
Olivia gostaria se o mundo fosse só dela, às vezes. Nem sempre. Seu amor pela solidão não era tão cego.
Mas ela mora sozinha, numa casa. Nem muito grande, nem muito pequena. Tem espaço para o que se precisa. A casa tem uma energia verde - sua cor favorita - e uma potência de transformação altíssima. Olivia não é um exemplo de pessoa decidida.
Nem eu.
O muro da casa é todo coberto por trepadeiras porque elas dão um ar de casa-de-campo. E Olivia sempre quis ter uma. Mais do que a casa, ela queria era ter a calma que dá o campo.
Tinha conseguido.
E agora?

segunda-feira, 10 de março de 2008

boas vindas

Depois de tanto relutar, acabei me rendendo. Blog criado, para a alegria de vocês! enfim, chegou o esperado momento de acabar com as leituras obrigatórias no meio de cafés e de conversas descompromissadas. take your time, está quase tudo por aqui. para quando vocês quiserem ler um pouquinho de mim.
não espero que faça todo o sentido do mundo, nem que deixe de fazer. não espero que vocês amem, ou que odeiem. não espero muita coisa. só espero que leiam.
sejam bem vindos, eu e vocês!

bibi

Escolhi grande. Sabia que poderia ser demais para mim, mas tenho essa mania de achar que pequeno não é ser suficiente. Mas era.
Pedi um suco de côco com abacaxi. Só porque queria fazer diferente. Não gostei tanto da nova experiência. Achei a espessura esquisita. Eu queria mesmo era o doce do côco, não sei por que foi que pedi o abacaxi para quebrar.
Às vezes me pego em flagrante querendo entender – o que?
Não sei explicar a minha própria escolha – o abacaxi nã
o tem tudo a ver com côco, mas fui eu quem quis assim. Atrevida, eu, querer que outro me explique a opção de não-viver um sabor só porque me parece agradável.
Figo com água de côco é fantástico. E tenho muita dificuldade em aceitar que tem quem goste desse suco, mas não tem o mesmo desejo que eu, o de bebê-lo comigo.

vinho

Gosto mesmo é de reação incontestável. Gosto do roxo que fica no lábio quando se bebe vinho. Gosto das lágrimas que correm depois de discussão. Gosto do grito aliviado que sai quando se tem raiva. Gosto do que acontece, e todo o mundo vê. Não gosto que neguem acontecimento acontecido. Não suporto. Acho falta de coragem.

Não que eu seja de uma coragem admirável. Me faltam muitas coisas, inclusive a coragem, tantas vezes. Mas tenho opinião. E não me falta coragem para me expressar.

Talvez eu até sofra de excesso de coragem. Acho que quando se têm muita coragem, se assustam os outros. Não é comum ter coragem de viver, ter coragem de sofrer, ter coragem de falar. Não sei nem se isso se chama coragem – pode ser é falta de. Eu acho é que peco por falar demais. E acelero a vida pelo excesso de vontade de viver. Não há muito o que fazer. Não há quem não peque. Ainda bem! Não sei nem o que considerar como pecado.

Pecadora que sou, acho pecado deixar passar. Mas tenho muito o que aprender! Principalmente aprender a não deixar passar só o que acho que não serve. Tem vezes que é preciso deixar passar o que talvez servisse. Eu ainda não tenho essa maturidade. Nem sei se um dia a terei. Imperfeita que sou, talvez nunca a tenha.

Nem tudo que me é oferecido deve ser aceito. Eu deveria ser capaz de, mesmo querendo, recusar. Tarefa árdua, não sei se conseguiria – apesar de que eu não desisto de tentar. Tento até me esgotar. Estou esgotada de pensar.

olhos teus

A luz dos olhos meus não sabe para onde olhar. A luz dos olhos meus é, às vezes, um pouco opaca. Uma luz sem brilho. Será que em alguns momentos fico sem luz nos olhos? Eles sobrevivem no escuro? Talvez eu já tenha passado por uma escuridão no olhar sem ter me percebido no escuro. É tanto que passa desapercebido por mim. E tanto que eu deveria não perceber, mas que faço questão de perceber até morrer. Perceber até o que não existe.
O que faz meus olhos brilharem é um perigo. Quem tem um poder desses, de dar a luz, que não é só ao meu olhar, é claro, tem outros poderes que nem me atrevo a imaginar! Parece com poder de mãe, mas a luz que dá a mãe é a da vida física, a entrada no mundo-da-gente. De pessoa física. Quem aumenta a intensidade da luz dos meus olhos me dá uma vida maior do que o corpo que foi me dado. E é essa a luz da vida, que quando some, parece que mata.
Talvez até seja possível a vida na escuridão. Quem sabe esse é meu mais novo desafio? Aprender a viver em luz baixa. Ou - talvez, quem sabe, por que não? – me iluminar de inúmeras fontes luminosas?! Eu sempre penso nessa possibilidade, na possibilidade de me alimentar da variedade. Mas é que eu não fui acostumada assim, e não acho a distribuição simples. Eu funciono inteira. Ser concentrada é, agora, mais do que característica.
Acho que preciso de uma reformulação. Nunca pensei que fosse tão difícil me diferenciar do que nem sempre foi meu. Pensar que o que quase me define hoje pode ser o oposto de mim daqui a um tempo (ah, o tempo...) causa calafrio. Eu misturo dentro de mim uma delícia de curiosidade de não saber o que serei mais para frente com uma insegurança forte. Insegurança por não saber o que serei mais para frente. (como se fosse segura agora, quando também não sei o que sou.)
Alguém aí sabe o que é?
Melhor que eu não saiba o que sou, por agora. Melhor ainda que eu não saiba o que serei mais pra frente. Eu não dou conta de tanto.

na lage

O meu café sempre acompanha água. Eu não dou conta do prazer amargo sozinho. Preciso de acompanhante. Não só pro café.


Se isso pode
E aquilo também
Se isso acontece
Posso também?

Eu decidi que quero uma parede cor de beringela. Eu sei que beringela é quase preto. Mas beringela é nutritivo e talvez ajude a me sustentar, junto com as minhas prateleiras-abacate.
Talvez dormir no beringela me sacie. A companhia dela e do abacate são legítimas. É uma companhia curiosa de se ter no quarto. Ainda mais se contarmos com a minha colcha cor-de-abóbora.

dança das cadeiras

Eu vi aquela pilha de cadeiras, aquela movimentação aliviada de “ufa, vamos embora!”. Vi tudo sendo guardado, uma sensação de melancolia estampada. Tudo que tinha acontecido por ali, naquele pequeno lugar em Botafogo, naquela noite, estava sendo esmagado no meio daquela pilha de cadeiras. Fiquei com pena. Aquela vassoura talvez estivesse varrendo coisas valiosas demais. Se bem que, se as deixaram por lá, deveriam mesmo ser varridas. Mas apertava o meu coração ver aquilo que eu não sabia o que era ser jogado no lixo.
Eu não sei por que foi que eu não achei essa cena linda. Por que foi que eu não imaginei que aquelas pilhas de mesas e cadeiras não representavam o tanto de histórias que começaram em Botafogo e continuariam pela Lapa.
De repente chegou a hora de assumir o meu gosto pela melancolia. Mas é que quando assumo um gosto me sinto numa certa obrigação de gostar constantemente dele. Não me sinto mais tão livre para, um dia, ao olhar para um estabelecimento fechando, abrir um sorriso emocionado com a imagem de um samba gostoso que foi dançado na Lapa após o jantar em Botafogo. Eu posso imaginar muita coisa. Eu gosto mesmo é de imaginar muita coisa.
Queria estar dançando em plena Lapa, sem nada disso na cabeça.

lei-natural

Foi quando chegou aos meus ouvidos uma idéia de lei-natural-dos-encontros. De primeira, soou macio. Mais tarde, comecei a fazer certa confusão. Sei que são muitas as leis. Tantas, que eu não coloco como tarefa decorá-las. Imagine se todos os Homens soubessem de todas as leis. Imagine se todos os Homens cumprissem com todas as leis que soubessem . Seria tudo tão correto! Quem seria fora-da-lei? (desconfio que seria candidata.) Viveríamos numa normalidade constante. Isso para mim seria caótico – o caos da normalidade. Talvez eu até fosse feliz nele.
Eu acho muito estranho “lei-natural”. Quem naturalizou a lei? Ninguém nunca perguntou para mim se considero lei coisa natural. Como podem, então, falar de lei-natural como se fosse algo comum do Homem? Será que eu deveria ser desconsiderada da humanidade? Eu questiono até a lei da natureza! Sei que tenho essa mania de questionar. Mas é que se realmente existisse essa lei-natural-dos-encontros, eu gostaria de ter acesso ao seu estatuto. Tenho uma leve esperança de que essa leitura torne essa uma questão mais clara para mim. É que não convivo facilmente com o mistério das relações. Isso pode ser um problema só meu. Eu sei. Queria saber usufruir do jogo que revela, aos poucos, o mistério. Tomara que alguém um dia me ensine. Imagino que seja complicado uma aprendizagem dessa por mim mesma.
Talvez eu tenha dificuldade com o que é natural. Eu tenho muitas dificuldades e uma esperança boba de que ler um conjunto de regras poderia me ajudar a entender. Que idéia!
Muito maior do que um banco, eu poderia construir uma arquibancada de idéias que eu deveria apenas guardar para mim.

sofá

Já era madrugada e eu pensei na coruja; na habilidade que as corujas têm de dormir com os olhos abertos. Eu gostaria de conseguir dormir bem mesmo vendo o tanto que acontece ao meu redor. Conseguir fechar os olhos mesmo quando estou com o olhar direcionado para a coisa. Mas o que impressiona mesmo é que isso não dói na coruja. É o dia-a-dia, noite-a-noite dela. É o meu também, mas eu desenvolvi isso como defesa. Faço esforço para conseguir isso, e nunca tenho um sono profundo. Não descanso. E estou cansada.
Se ao menos eu soubesse desviar o olhar. Acho que é isso que fazem na maioria das vezes. Não se esquece, nem se fecham os olhos. Mas outras direções são observadas, e fica mais leve viver. Por isso que o meu sono é, às vezes, tão pesado?! E me levanto pior do que quando me deitei.
Realmente eu tenho muito o que aprender. Mas eu fico com a agústia de quem quer ensinar. Se eu não fosse única nos meus pensamentos, talvez me sentisse menos sozinha. Eu acho que faço um pouquinho de sentido. Quando você quiser, eu espero estar aqui para ensinar uma pontinha minha.
É cansativo estar sempre disposta.

adivinha

Um dia, acordei e achei que a busca pelo equilíbrio não era mais o que orientava meu viver. Isso me assustou um pouco, mas me pareceu uma conquista. Realmente seria, se não fosse apenas sensação matinal. Eu sempre fiz uma questão insana de ser equilibrada.
Talvez eu nunca viesse a descobrir a verdade sobre esse assunto. Era mais provável que isso continuasse sendo um campo incerto. Descobrir a verdade faria perder o mais interessante – a liberdade de imaginar uma diversidade de respostas. É tão melhor não saber certas coisas! Mas acho inevitável que não se pense sobre essas coisas. Eu confesso que acho tarefa difícil pensar sem querer saber. Eu tenho dificuldade de desistir sem saber a resposta. (a resposta viria sempre do outro, já que acho impossível escolher dentre as tantas que eu imagino. A escolha me faz sofrer.)
Não gostaria de saber demais (talvez eu saiba mais do que deveria e por isso sinto mal-estar). Mas não saber de certas coisas me dá angústia. Será que é coisa minha querer ouvir o que não me dizem, enxergar o que não me mostram, participar do que não sou convidada?
O jogo de adivinhar a vida me agrada. Mas eu acho que me faz mal. Muito do que faz mal me agrada, e muito do que faz bem me desagrada. Espero que isso seja normal. Espero que isso seja normal porque eu espero não ser louca. Isso, eu não sei o por quê. A única pessoa que disse que eu não posso ser louca foi eu mesma. A luta mais árdua que enfrento é contra o que eu mesma afirmo. Eu sou adversário violento.

fiscal demente

Embarcou numa viagem cujo destino desconhecia. Isso era motivo para temer – sim ou não?
Quem não tem medo não vai pra frente, gosto de acreditar nisso. Acho que não vai a lugar algum; o que não quer dizer que, por temer, vou com facilidade.
Então era bom que me sentisse assim, é, poderia ser. Mesmo que não fosse bom, era assim que me sentia – com medo. Doía um pouco. Sentia pontadas de vez em quando. Pelo corpo todo. As que acertavam o coração eram as que mais sangravam, apesar da minha dúvida se as dores mais doloridas são mesmo as do coração.
Viver dói mesmo. Não suporto essa frase. Parece consolo, e consolo não me agrada muito. Tornar um sentimento coisa comum não amortece a sua posse. (isso, supondo que temos posse das nossas dores...)
Eu consolo os outros mesmo assim.
Eu disse que queria ir para não sabia onde? Talvez fosse melhor me deixar por aqui, onde já penso que conheço. Mas eu não resisto – difícil demais não embarcar numa viagem.
Quem foi mesmo que disse que eu queria viajar?
As minhas vontades são confusas. Parece que cada uma tem vida própria. Passa tanto pela minha cabeça que, de vez em quando, cogito a idéia de contratar um fiscal-de-mente. Mas isso seria uma atitude tão repressora que eu não suportaria a vergonha de ser autora. Apesar de reconhecer que tenho uma parte que reprime. Tenho também uma outra parte – a que quer muito ser muito livre. Ter aquela liberdade que não acho muito possível que exista, mas que, em alguns momentos, aparece estampada em certas pessoas. Talvez ninguém realmente a possua – possuir liberdade não faz muito sentido mesmo. Só acho que existe porque eu não tenho.
Começo a duvidar da necessidade do fiscal-de-mente. Não sei se eu confiaria numa figura, que não eu mesma, para fazer vigilância de mim. A minha vigilância é tão rigorosa que eu poderia ser general de mim mesma. Ou eu poderia, simplesmente, admitir que já sou.

maio

Era uma incerteza tão certa que angustiava a alma. Era uma dúvida tão cruel que colocava em cheque todas as conclusões tiradas até então. Fazia desconstruir tanto do que já havia construído pela vida afora…
Eu sempre construí. E com tijolos. Quanto mais compacto, melhor. Vinha vivendo, até hoje, calcada nas certezas, sempre sabendo onde era seguro pisar. Era como se isso fosse meu fator de organização e, a partir dele, formava meu centro e minha periferia. De repente, fiquei sem. Ficar sem é ter falta de organização ou é ter desorganização? Isso ainda não sei responder. Um dia, pretendo eu, saber. Pretendo saber viver independentemente dessa resposta. Ah, se não precisasse de tantas respostas para um melhor-viver...!
Conviver com a incerteza – ou a própria falta de certeza, são situações diferentes – seria uma vitória. Isso eu só digo porque ainda não sei assim viver. Quando souber, vou achar coisa simples.
Diria, então, que dureza é viver na certeza. Que dureza! Como pode o Homem sustentar a combinação da flexibilidade da vida com a inflexibilidade de si?
Não sei. Mas foi assim que vivi até hoje, e me parecia uma dureza um tanto quanto reconfortante. Essa contradição era o que, tantas vezes, me equilibrava.
Não sei se o Homem precisa da firmeza de uma afirmação para que possa se construir. Eu sempre me apoiei na certeza com a ingênua intenção de ser amparada. É quase inacreditável constatar o quão abalável é minha estrutura. Logo eu, que acreditava ser tão bem sedimentada.
Sempre quis ter esperança. Pensar que o que hoje é fraco, amanhã é forte, e assim por diante. Queria de fato assim pensar. Ou, pelo menos, ter a certeza de que, uma vez perdida, minha esperança pudesse ser recuperada. Eu subestimo a força da esperança. Isso é porque ela nunca me provou a grandiosidade da sua potência. De novo, em evidência a minha tola necessidade de certeza, achando que é só a partir dela que vou conseguir me re-construir.

conto de sábado

Já estava acostumada a acordar assim, com essa sensação de incompletude misturada com pendência. Levantou-se e, ao ver seu reflexo no espelho do banheiro, constatou que era impossível se encarar naquele momento. Achou melhor fazer um café para tentar se esquecer da angústia.
Não passou. Nem com a primeira xícara, nem com a última, que esvaziou o bule.
Tentou ler, tentou escrever, tentou gritar. Estava cansada de tentar. Começara a achar que aquela sensação fazia, simplesmente, parte de si. Por que lutar contra esse estado, então? Talvez nem soubesse ser novamente, se fosse separada disso. Seria por isso que nunca conseguira se desvencilhar? Não importava. Ela não desistiria de tentar ser por si mesma. Se livrar disso virara a mais nova missão.
Como lhe era de costume aos sábados, vestiu sua bermuda cor-de-abóbora e sua camiseta branca. Era assim que partia para sua caminhada pela orla. Ia mesmo quando a vontade não batia. Sua mãe sempre lhe dissera que isso fazia com que seu dia começasse melhor. Era, em parte, verdade. Pensava sempre que o dia poderia ser pior do que aquilo.
O sol da manhã, geralmente, acalmava seus pensamentos. Hoje, não. Hoje, pelo contrário, a luz solar estava fazendo de sua cabeça a morada do caos.

Achei bom hoje não ser como geralmente. Essa diferença trouxe uma novidade não muito confortante, que fez crescer. O desconfortável costuma ser produtivo, no fim das contas. No fim ou – por que não?! - no meio também. Para os mais sortudos, pode aparecer boa coisa desde o início. Isso é privilégio que poucas vezes tenho.
Eu era um pouco tola de ficar contente com a calmaria trazida pelo sol da manhã.
É muito errado ter prazer pelo caos? Pode até ser que seja errado. Mas aposto que não sou a única. Acho que no caos eu me sinto menos desordenada. Me sinto num ambiente mais seguro. A organização tem um peso - um compromisso de ser constante. Não sei se sou pessoa pronta pra assumir tanto. Talvez seja demais para mim, eu reconheço e posso escapar para o caos. Agora eu conheço essa possibilidade e me permito esse trânsito. Isso pra mim é uma conquista. Eu assumo ter gosto pelo caos. Tenho menos medo de mostrar minha humanidade. Menos medo da imperfeição.
Na volta para casa comecei ter certa afeição pela angústia desse sábado.